27 março 2007

LANÇAMENTO NOVA EDIÇÃO JORNAL VAIA

Estão todos convidados, compareçam!

25 março 2007

FERNANDO PESSOA: ODES DE RICARDO REIS


SIDNEI SCHNEIDER, 2006

A obra de Ricardo Reis, poeta neoclássico criado por Fernando Pessoa, inventor de pelo menos 75 autores fictícios, inegavelmente estabelece diálogo com Horácio, o poeta latino da época do imperador Otávio Augusto, auge do Império Romano. Não é preciso muito esforço para comprovar essa relação, no entanto estabelecer em que medida um poeta dialoga com outro, nos aspectos formais, temáticos e conteudísticos, merece exame e reflexão, e pode esclarecer os que lhe absorvem a obra às cegas.

Se Quinto Horácio Flaco, filho de escravo liberto e mãe desconhecida, nascido em 65 a.C. e morto oito anos antes do nascimento de Cristo, viveu num período de paz e prosperidade após a solução dos conflitos sucessórios gerados pelo assassinato de César, Ricardo Reis teve sua fictícia existência, iniciada em 1887 e paralela a de Fernando Pessoa (1888-1935), num Portugal em luta para consolidar a República, numa Europa conturbada pela Primeira Guerra Mundial e pela eclosão da Revolução Soviética, e onde se gestava um conflito mundial de proporções ainda maiores. Enquanto Horácio, poeta por profissão, estava em consonância com aquela prosperidade e apoiava, resguardando sua independência, o governo de Augusto, Ricardo Reis, médico educado num colégio de jesuítas, era politicamente conservador e defendia a volta à Monarquia, tendo por isso se auto-exilado no Brasil em 1919. Por viver em conflito com o mundo moderno, refugia-se na antigüidade clássica, sendo “um latinista por educação alheia e um semi-helenista por educação própria” conforme seu criador. Evidentemente, as determinações históricas e pessoais se refletem na obra do poeta romano, mas por incrível que pareça, também na do poeta inventado, criando uma impressionante relação entre obra e vida, já que a poesia do heterônimo pessoano almeja que nada mude e teme quaisquer alterações a sua volta.

Quanto à forma, Ricardo Reis busca uma identidade com Horácio, isso no que se refere às odes, já que apenas com elas dialoga, rejeitando as sátiras e epístolas, ainda que adapte as odes horacianas, baseadas na sílaba longa e breve, aos parâmetros métricos e rítmicos da língua portuguesa, bastante diferenciados do latim clássico. A forma estrófica, nas suas diferentes modalidades, no essencial mantém-se.

Uma característica da poética horaciana aponta que os poemas não devem apenas ser belos, mas doces, suaves, tranqüilos, agradando pelos sentimentos brandos que despertam, proposição esta em parte absorvida pelas Odes de Ricardo Reis: “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira rio./ Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos/ Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas./ (Enlacemos as mãos.)” (80). Se Horácio, que nunca renegou sua origem escrava e se orgulhava dela, tinha na escrava liberta, chamada de libertina, a mulher ideal, atribuindo às suas amantes nomes fictícios como Lídia, Cloe, Neera, a obra de Ricardo Reis vai se utilizar dos mesmos nomes, sombra da sombra, para expor a sua peculiar visão de mundo.

Para Horácio a morte é a grande mestra da vida, sendo ela certa, importa é gozar o dia, colher o dia que passa, carpe diem, como se fosse o último, “Enquanto conversamos,/ foge o tempo invejoso./ Desfruta o dia de hoje, pensando/ o mínimo possível no amanhã” (Ode à Leucónoe). Uma filosofia, como se pode sentir, não lá muito combativa no sentido de prover o ser humano de elementos para, com o próprio esforço, construir o seu futuro. Contudo, já que a felicidade não é absoluta mas relativa, para colher da vida os dias felizes antes da velhice e da morte, o poeta latino propõe celebrar o festim regado a vinho com os amigos e a amada, o máximo a que se poderia chegar em termos de felicidade. Tudo isso sem excessos, já que o meio-termo é a suprema ventura, sendo esse um festim anterior às orgias praticadas no período da Decadência, condenadas na época de Horácio. Não se bebe para esquecer a morte, mas para a partir dela enaltecer a vida. Ricardo Reis não tira partido da morte, em relação à vida propõe apenas que “saibamos/ Sábios incautos,/ Não a viver,// Mas decorrê-la” e tendo “Nem o remorso/ De ter vivido” (73). Pergunta e responde: “Que é qualquer vida? Breves sóis e sono” (145). Para ele nada tem sentido, nem a vida nem a morte: “Não vale a pena/ Fazer um gesto./ Não se resiste/ Ao deus atroz/ Que os próprios filhos/ Devora sempre” (74).

Finge seguir Horácio, “Mas tal como é, gozemos o momento,/ Solenes na alegria levemente,/ E aguardando a morte/ Como quem a conhece” (82), entretanto nem o gozo tem razão de ser quando se dirige à Lídia, “Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos./ Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio” (80). E quando propõe o gozo com mais convicção, “Cada dia sem gozo não foi teu/ Foi só durares nele”, ele se resume a um “reflexo do sol ido na água/ De um charco” (147).

Em relação ao gozo proporcionado pelo vinho, Horácio ensina que se bebe coroado de flores, a coroa ensina a viver, já que as folhas e flores ao murcharem estimulam a gozar o dia que foge. Ricardo Reis pede, “Coroai-me de rosas” (77) mas rejeita “idéias que trazem rosas” (139). Diz à amada que de nada adianta beber o vinho, porque entre uma taça e outra pode ocorrer a morte, “E brindemos uníssonos à sorte/ Que houver, até que chegue/ A hora do barqueiro” (123). Bebe não para glorificar a vida, nem mesmo para esquecer a morte, “Sábio” é o que “sabe fazer que a cor do vinho esconda isto,/ Que o seu sabor orgíaco/ Apague as horas” (86). Horácio bebe nos festins que ocorrem nas datas festivas, no calendário de Ricardo Reis não existem dias de trabalho e dias de festa, ele vive num eterno lazer, sem trabalho obrigatório, “me entrego, filho/ Ignorado do Caos e da Noite/ Às férias em que existo”. Não distingue “lazer com dignidade” e “lazer sem dignidade” como fazia Horácio.

O poeta latino glorifica a juventude como o período ideal para participar do sagrado festim, para Ricardo Reis “Melhor vida é a vida/ Que dura sem medir-se” (117), e sempre auto-referente sofre “Já o frio da sombra/ Em que não terei olhos./ A caveira ante-sinto” (124). O festim baseia-se na solidariedade humana e supõe uma reunião de amigos, e para Horácio o amigo é “a metade da alma”. Já Ricardo Reis é sem amigos, completamente sozinho, e sozinho por opção, apenas algumas mulheres se apresentam como fantasias saídas das páginas de Horácio, “Suave é viver só./ Grande e nobre é sempre/ Viver simplesmente” (109), “E nada tem sentido – nem a alma/ Com que penso sozinho” (131).

Defensor das posses médias, do meio-termo entre a riqueza e a pobreza, Horácio acredita que “quem quer pouco tem tudo”, Ricardo Reis repete a assertiva, mas a modifica para negar a relação amorosa, “Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada/ É livre: quem não tem, e não deseja,/ Homem, é igual aos deuses” (137). Ambos os poetas preferem o campo à cidade, Horácio elogia a harmonia social que possibilita a pequena propriedade romana, antes de Otavio Augusto arruinada, e sente-se realizado na sua modesta Vila da Sabina. Ricardo Reis retruca, “usemos a existência/ Como a vila que os deuses nos concedem”, entretanto o faz com um objetivo banal, “Para esquecer o estio”, repelindo qualquer “outra forma mais apoquentada” de viver (92).

Horácio crê na Providência Divina e tenta alcançar favores das deidades através de preces e sacrifícios. Ricardo Reis descarta o cristianismo como única religião, “Vós que, crentes em Cristos e Marias,/ Turvais da minha fronte as claras águas” (96), e apesar de se referir aos deuses, pagão que finge ser, desconfia deles e a rigor é materialista, “Mesmo para com esses/ Que cremos serem deuses, não sejamos/ Inteiros numa fé talvez sem causa” (159), ainda assim propõe que se imite uma muitíssimo duvidosa qualidade divina, “Os deuses são deuses/ Porque não se pensam” (109).

A proposição moral de Horácio de praticar o bem evitando o mal, perde a razão de ser em Ricardo Reis, que pratica somente a indiferença. Para Horácio, o fruto é mais importante que a flor, para Ricardo Reis, frutos e flores, colhidos ou não, pouca diferença têm: “Colhido, o fruto deperece; e cai/ Nunca sendo colhido” (118), “Flores que colho, ou deixo,/ Vosso destino é o mesmo” (118). Horácio sente responsabilidades diante do mundo e lembra-se de “conservar um ânimo igual/ na adversidade como na prosperidade,/ comedido da excessiva alegria” (Livro II, Ode 3). Ricardo Reis abdica delas, para ele a moral, a vida, tudo é inútil: “Ah, não consegues contra o adverso muito/ Criar mais que propósitos frustrados!/ Abdica e sê/ Rei de ti mesmo” (126), quer “a visão clara/ E inútil do Universo” (101).

Apesar de não ter predileção pela poesia épica, Horácio põe sua lira a serviço do saneamento e da recuperação do Império, exerce um patriotismo crítico, procura agradar e instruir. Horácio detesta a guerra, ama a paz que propicia a realização da prosperidade e do festim, mas crê que se deve lutar quando se trata de uma guerra justa, o que inscreve num de seus mais famosos versos, “É doce e belo morrer pela Pátria” (Livro III, Ode 2). Ricardo Reis, por sua vez, só se inquieta se o rei de marfim do jogo de xadrez corre perigo, mesmo que “caiam cidades, sofram povos”, e a ele “Pouco pesa na alma que lá longe/ Estejam morrendo filhos” (104). Quando escreve “Prefiro rosas, meu amor, à pátria” (107), pergunta “Que importa àquele a quem já nada importa”, e responde “Nada, salvo o desejo de indiferença/ E a confiança mole/ Na hora fugitiva” (107). No fundo, Horácio aconselha que se faça amor, não a guerra, enquanto Ricardo Reis não aconselha nem uma coisa nem outra, “Vê de longe a vida. Nunca a interrogues” (109), pois nada vale a pena.

Horácio ama sem culpas a libertina, seja Lídia, Cloe ou outra, Ricardo Reis não quer ser amado, pois isso demandaria um amor a ser retribuído que ele não tem, “Não quero, Cloe, teu amor, que oprime/ Porque me exige amor. Quero ser livre.” (137). Quer que os deuses lhe concedam que “despido/ De afetos, tenha a fria liberdade/ Dos píncaros sem nada” (137). Horácio escreve “enquanto dura a vida, amemos”, Ricardo Reis inverte o raciocínio e diz que enquanto não “se engelha conosco/ O mesmo amor, duremos” (89). Simulando Horácio, Ricardo Reis bebe, coroa-se de rosas, senta-se à mesa ou em frente à lareira com a mulher horaciana, mas conclui que nada disso adianta, pois “quem nos ama/ Não menos nos limita” (137) e “Ninguém a outro ama, senão que ama/ O que de si há nele” (145). Em Horácio ocorrem todas as manifestações do amor: beijos, carícias, enlaces. Ricardo Reis reconhece que também poderiam haver tais coisas entre ele e Lídia, “podíamos,/Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias”, mas conclui que “não vale a pena cansarmo-nos” (80). O único beijo possível é o de despedida, à hora da morte, quando “já nos toque/ No ombro a mão, que chama/ À barca que não vem senão vazia” (123).

Quando escreve “Para ser grande, sê inteiro: nada/ Teu exagera ou exclui./ Sê todo em cada coisa. Põe quanto és/ No mínimo que fazes./ Assim em cada lago a lua toda/ Brilha, porque alta vive” (146), um poema louvado com justiça quando lido fora da “profunda neurose” (Leyla Perrone-Moisés) do conteúdo da obra e que não parece ser de quem é, Ricardo Reis em verdade está apenas dialogando com Horácio, combate a filosofia do meio-termo dourado, a busca do equilíbrio que apara e exclui os excessos. Em Ricardo Reis, o almejado equilíbrio é frágil, tenta se sustentar numa atitude de não interferência na vida, para não sofrer finge um equilíbrio que é falso, desesperado na verdade. Não sabe que “O que vive fere”, como anotou João Cabral de Melo Neto no poema O Cão Sem Plumas, “O que vive/ incomoda de vida/ o silêncio, o sono, o corpo/ que sonhou cortar-se/ roupas de nuvens”.

Com Ricardo Reis, anti-heraclitiano por excelência, cessa o movimento do mundo, “Tudo quanto me ameace de mudar-me/ Para melhor que seja, odeio e fujo./ Deixem-me os deuses minha vida sempre/ Sem renovar” (114). “Nada fica de nada. Nada somos”, a não ser “Cadáveres adiados que procriam” (146). Curiosamente, o mesmo verso que, no singular e com sentido oposto, aparece num poema de Fernando Pessoa “ele mesmo”, Dom Sebastião, de Mensagem, sobre o audacioso rei que encarna o desejo de prosperidade de Portugal: “Sem a loucura que é o homem/ Mais que a besta sadia,/ Cadáver adiado que procria?”.

O exame das Odes de Ricardo Reis revela o poder de persuasão da poesia, para o bem ou para o mal. Poder que se reflete nas outras artes e, por extensão e múltiplos mecanismos, na maneira como cada um de nós vê e sente o mundo mesmo sem nunca ter lido um poema, afetando a sensibilidade de toda nação, como uma vez anotou o poeta T.S.Eliot, e da qual dependem, e muito, as ações humanas. Na obra em negativo de Ricardo Reis há coisas horríveis admiravelmente bem escritas, num tom tranqüilo, suave e aliciador, que não foram produzidas pelo poeta que as assinou, mas por outro, que lhe inventou uma biografia, uma obra e um estilo, como o fez com Alberto Caeiro e Álvaro de Campos. Em síntese, para Horácio tudo vale a pena se a alma se mantém na virtude do meio-termo dourado, para Ricardo Reis “Não vale a pena/ Fazer um gesto” (74), “Nada que haja/ Vale que lhe concedamos/ Uma atenção que doa” (140), enquanto Fernando Pessoa “ele mesmo” responde à questão no poema Mar Português, também de Mensagem: “Valeu a pena? Tudo vale a pena/ Se a alma não é pequena./ Quem quer passar além do Bojador/ Tem que passar além da dor./ Deus ao mar o perigo e o abismo deu,/ Mas nele é que espelhou o céu.”

* Bojador é o cabo da África até onde o mar era conhecido no século XV, antes dos descobrimentos.
** Os números entre parêntesis após os versos de Ricardo Reis indicam as respectivas páginas do volume Ficções do Interlúdio/ 2-3, Odes de Ricardo Reis e Para além do outro Oceano de C(oelho) Pacheco. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
*** Esse trabalho originalmente é de maior extensão e dividido em duas partes, sendo a parte sobre a aproximação formal entre a obra de Reis e Horácio, indicada para especialistas e aqui não apresentada, de responsabilidade do pesquisador Daniel Costa da Silva.
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Poemas no box da página:
DEPOIS DO BOJADOR

Mestre, são duras
Todas as horas
Que nós vivemos,
Mas ao vencê-las,
No coração,
Repomos flores.

Não há tristeza
Nem alegria
Na nossa vida
Que nos impeça
De a viver
Com energia,

Tranqüilos, lúcidos,
Tendo os poetas
Junto aos heróis
Por nossos mestres,
E os olhos cheios
De mil belezas.

Por renovados
No rio da vida,
Ganha a estrada
O nosso passo,
Sóbrios do vento
De estar lutando.

O tempo passa,
Encobre a tudo.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Despachar o pó,
Seguir em frente.

Sim, vale a pena,
Qualquer o gesto,
Para que finde
A dominação
Que nossos filhos
Devora ainda.

Colhendo flores
E vis intrigas,
Nosso concurso
Vence o feroz
Deus econômico,
Altera o mundo.

Nosso destino
É um coral,
Não uma voz
Desiludida,
Pois se é boa,
Invalida-se.

O nosso povo
É o nosso sol,
Sua esperança
É nosso guia;
A humanidade,
Nossa alegria.

Tranqüilos vamos
A te mudar,
Mundo inóspito,
Com a certeza
Que o bem maior
É ter nascido.


MEMENTO DOS MORTOS

Quem sente prazer
sádico diante do povo
não tem uma alegria que é sua:

Dança entre facas
Postas de pé e não acha
Um só ponto a salvo do corte.

Sidnei Schneider

* Depois do Bojador, poema que abre o livro Plano de Navegação, contrapõe-se quase estrofe a estrofe à primeira das Odes de Ricardo Reis, resguardando aspectos da forma horácio-pessoana. Memento dos Mortos trabalha idéias do antigo filósofo grego Demócrito de Abdera.
BIBLIOGRAFIA

ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A poética clássica. São Paulo: Cultrix, 1992.
BAUMGARTEN, Carlos Alexandre. A proposição de mundo em Ricardo Reis. In: Letras de hoje. Porto Alegre N. 47 (mar. 1982), p. 67-85
CAMOCARDI, Eleusis Mirian. Neoclassicismo nas odes de Ricardo Reis. In: Revista de letras. São Paulo Vol. 30, (1990), p. 161-171
ELIOT, Thomas Stearns. De poesia e poetas. São Paulo: Brasiliense, 1991.
FAZOLI FILHO, Arnaldo. História Geral. São Paulo: Ed. do Brasil, 1977.
IVO, Oscarino da Silva. Estrutura métrica em Horácio e em Ricardo Reis. In: Ensaios de Literatura e Filologia. Belo Horizonte Vol. 3 (1981), p. 123-136
MAFRA, Johnny José. Os motivos da lírica horaciana e a poesia de Ricardo Reis. In: Ensaios de Literatura e Filologia. Belo Horizonte Vol. 3 (1981), p. 139-152
MELO NETO, João Cabral. Antologia poética. Rio de Janeiro: José Olimpo, 1979.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Fernando Pessoa: Aquém do eu, além do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
PESSOA, Fernando. Ficções do Interlúdio/ 2-3, Odes de Ricardo Reis e Para além do outro Oceano de C(oelho) Pacheco. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
________________. O guardador de rebanhos e outros poemas. Introdução de Massaud Moisés. São Paulo: Cultrix, 1988.
SEVERINO, Alexandrino E. O conceito poético de ode. In: Alfa: Revista de Lingüística. Marilia n. 16 (1970), p. 55-73
SCHNEIDER, Sidnei. Plano de Navegação. Porto Alegre: Dahmer, 1999.
TRINGALI, Dante. Horácio poeta da festa, navegar não é preciso, 28 odes. São Paulo: Musa, 1995.

SIDNEI SCHNEIDER, Hora do Povo, São Paulo, 15 set. 2006, p. 8.

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ALEKSANDR PÚCHKIN

Если жизнь тебя обманет,
Не печалься, не сердись!
В день уныния смирись:
День веселья, верь, настанет.


Aleksandr Púchkin (Rússia, 1799-1837)

JULIO CORTÁZAR

BOLERO

Qué vanidad imaginar
que puedo darte todo, el amor y la dicha,
itinerarios, música, juguetes.
Es cierto que es así:
todo lo mío te lo doy, es cierto,
pero todo lo mío no te basta
como a mí no me basta que me des
todo lo tuyo.

Por eso no seremos nunca

la pareja perfecta, la tarjeta postal,
si no somos capaces de aceptar
que sólo en la aritmética
el dos nace del uno más el uno.

Por ahí un papelito

que solamente dice:

Siempre fuiste mi espejo,

quiero decir que para verme tenía que mirarte.

Julio Cortázar (1914-1984)

22 março 2007

PAUL CELAN


DO AZUL que ainda busca seu rosto, sou o primeiro a beber.
Vejo e bebo de teu rastro:
Deslizas pelos meus dedos, pérola, e cresces!
Cresces como todos os esquecidos.
Deslizas: o granizo negro da melancolia
cai num lenço, todo branco pelo aceno de despedida.

PAUL CELAN (Romênia, 1920-1970)
Tradução Claudia Cavalcanti.

GERALDO BESSA-VICTOR

BATUQUE

Marimbas, ngomas, zabumbas,
guizos, quissanges, chigufos...
Batuque doido – loucura
regada pelos marufos...

Bailados sensuais, ardentes;
perturbante orquestração;
canções sentidas, dolentes,
que brotam do coração.

E essa marimba, que toca
Com mais força, bem mais forte,
É mesmo a alma da raça
Espantando a própria morte!

E aquele negro, que canta
Com mais calor e paixão,
É mesmo a voz do prazer
Disfarçando a escravidão!

E aquela negra, que dança
mais esbelta e mais torcida,
é mesmo a imagem do Sonho
fazendo bailar a vida!

O batuque me atordoa.
E eu me encanto e me confundo
Nesta loucura que voa
e soa longe do mundo...

E sinto dentro da alma
este batuque sem fim!
Eu sinto bem o batuque
a gritar dentro de mim!

Ao Som das Marimbas, 1943

20 março 2007

MELHOR COMENTÁRIO


Anônimo disse...

eu,adoro poemas e estava pesquisando quanto encontrei aqui e achei muito legal adorei pra caramba a minha professora pediu poesias para min e meus colegas levarmos para botar no mural da escola,e eu esto procurando sobre Clarica Lispector.Adorei a homenagem tudinho pra caramba e é so o que eu queria falar

07.03.2007. 10:32 PM ... ver contexto

17 março 2007

MARIO QUINTANA: PRA QUE VIVER ASSIM NUM OUTRO PLANO?

Sidnei Schneider, 2006

A comemoração dos 100 anos de nascimento de Mario Quintana, além de colocar obra e poeta em evidência, é momento adequado para indagações e releituras. Coroado poeta mais importante do Rio Grande do Sul, contribuição do estado para a plêiade nacional, diante do qual devem se posicionar obrigatoriamente os novos autores e as novas gerações de leitores, sua poética merece respeito e exame, saudação e crítica, única maneira de homenageá-lo sem rapapés e ingenuidades, detestadas por ele.

No primeiro livro, A Rua dos Cataventos (1940), espécie de filme de cenas sucessivas compostas por sonetos, é possível identificar os dois vetores que o levariam a ser um poeta do cotidiano, das pequenas coisas da vida de onde pretendeu arrancar uma revelação e, função direta de toda poesia, uma maneira nova de sentir o mundo. Para tanto, recusou o isolamento da torre de marfim, o lugar em que deveria ficar o poeta segundo escolas literárias tão voltadas para o respectivo aspecto formal quanto despreocupadas da realidade, como o parnasianismo e, tirante o melhor de Cruz e Sousa, o simbolismo. Assim, a proposta anterior era clara:

Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino, escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!

(A um poeta – Olavo Bilac)

Cabe a Quintana o mérito de produzir uma antítese disso, no melhor dos seus sonetos:

Minha rua está cheia de pregões,
Parece que estou vendo com os ouvidos:
“Couves! Abacaxis! Cáquis! Melões!”
Eu vou sair pro Carnaval dos ruídos,

Mas vem, Anjo da Guarda... Por que pões
Horrorizado as mãos em teus ouvidos?
Anda: escutemos esses palavrões
Que trocam dois gavroches atrevidos!

Pra que viver assim num outro plano?
Entremos no bulício quotidiano...
O ritmo da rua nos convida.

Vem! Vamos cair na multidão!
Não é poesia socialista... Não,
Meu pobre Anjo... É... simplesmente... a Vida!...



(Soneto IV)

Acontece que essa mesma disposição de aproximar-se do real, aqui tão bem formulada, não era total nem irrestrita, o poeta permanecia, por opção, adstrito a determinados temas e abordagens, negando-se a abarcar a totalidade da vida: colocava fora do campo da sua sensibilidade poética, em assumido a priori declarado em verso e prosa, tudo o que fosse socio-político. Verdade que muitas coisas são sociais e políticas, e em sentido amplo e humano, tudo, mas quanto ao que ele se referia, por exceção alguma vez se contradisse, tematizando os humilhados sociais, entretanto tais poemas, de acordo com ele mesmo, estão longe de figurar entre os melhores. Independente da preocupação que o cidadão Mario Quintana pudesse ter com os grandes acontecimentos da sua época, ela parecia ser insuficiente para penetrar a sua poesia ou esbarrava nessa limitação auto-imposta. Diferentemente do que fizeram Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar e outros. Não só porque abordaram uma problemática que afetava nosso modo de viver e encarar o mundo – Segunda Guerra, bomba atômica, luta pela soberania, questões sociais brasileiras, período ditatorial – diretamente, mas porque as aflições e desejos dos brasileiros e da humanidade estavam subjacentes ao conjunto de sua obra de maneira diversa, não excludente. A possibilidade da hecatombe nuclear, como não podia deixar de ser, sensibilizou a Quintana, gerando vários poemas. Mas não se trata aqui, bem entendido, de exigir que o poeta só se refira a grandes temas ou episódios, menosprezando os outros – uma formiga trazendo o frêmito da vida à página em branco era um poema para Quintana, quanto um mosquito fazendo sombra de lira em outra, para Vinicius – pois ao público e ao leitor interessam muitos temas, abordagens e formas. Ao contrário, o que surpreende é a exclusão voluntária a que o poeta se submeteu, como se isso pudesse atrapalhar a sua poesia ou como se ele não estivesse preparado para abordar poeticamente assuntos tão complexos, superar o mundo provinciano em que estava metido.

Eu nada entendo da questão social.
Eu faço parte dela, simplesmente...
E sei apenas do meu próprio mal,
Que não é bem o mal de toda gente,

Nem é deste Planeta... Por sinal
Que o mundo se lhe mostra indiferente!
E o meu Anjo da Guarda, ele somente,
É quem lê os meus versos afinal...

E enquanto o mundo em torno se esbarronda,
Vivo regendo estranhas contradanças
No meu vago País de Trebizonda...

Entre os Loucos, os Mortos e as Crianças,
É lá que eu canto, numa eterna ronda,
Nossos comuns desejos e esperanças!

(Soneto V)

Deixemos de lado, porém, a leitura mais imediata desse que é o poema mais polêmico de Quintana para avaliar uma mais favorável, baseada na ironia – o poeta não estaria dizendo o que está escrito, estaria se auto-ironizando – leitura apoiada em versos como “Nem é deste Planeta... Por sinal” e “No meu vago País de Trebizonda...”. Estaria o poeta falando a sério? Não entenderia nada da “questão social” quem, dez anos antes, alistara-se como voluntário na Revolução de 30, através do 7º Batalhão de Caçadores de Porto Alegre, rumando com Getúlio Vargas para derrubar Washington Luís no Rio de Janeiro? Verdade que ele se decepcionou, não com a causa, como explica a sobrinha Elena Quintana, mas com sua própria atuação: “O grupo do qual o tio fazia parte ficou encarregado de policiar o mangue. Não foi muito agradável. O tio, como escrevia bem, ainda foi designado a fazer os diários da tropa. Ele contava que os fazia com liberdade, com um texto bem floreado. Mesmo assim, decepcionou-se com o trabalho pesado e com, digamos, a falta de glamour da função”. Além disso, jovem desregrado e assim a vida inteira, ele não teria se deixado “contaminar” pela disciplina militar. Permaneceu seis meses no Rio de Janeiro e voltou para Porto Alegre. O fato é que depois dessa experiência a política se apagaria do seu horizonte, chegando ele a declarar mais tarde que se alistou porque “estava curioso de conhecer o Rio”, afirmação que não pode ser lida longe do seu espírito galhofeiro. Admitamos, então, uma referência auto-irônica nesse soneto, um grau de consciência, por assim dizer, de si mesmo. Mas por que continuamos com a forte impressão de que nesse poema o poeta deslindava da sua poética aspectos importantes da realidade? Talvez ajude na resposta uma anedota de consultório onde o paciente diz ao analista, “Doutor, cheguei à conclusão de que sou péssimo marido, mau amante e um pai medíocre”. O analista, ao invés de perguntar o habitual, “Por que o senhor diz isso?”, ou “Por que o senhor se deprecia dessa maneira?”, ou “O senhor conhece alguém assim na sua família?”, opta por outra alternativa: “O fato de o senhor me dizer que é péssimo marido, mau amante e um pai medíocre, não diminui em nada a possibilidade de o senhor ser um péssimo marido, mau amante e um pai medíocre”. Ou seja, às vezes quando alguém se autocritica o faz com a certeza íntima de que não é nada disso do que está dizendo, pois a verdade está encoberta e é melhor que a aparência. Em relação a Quintana, o dado é que ele exercitou durante a vida muito do que aqui, na primeira publicação, expunha entre afirmativo e auto-irônico, por isso a citada impressão forte que o poema causa permanece.

Objetivando uma análise justa, podemos dizer que as esperanças, pelo menos, estão ali, todavia de modo insuficiente para negar totalmente o que está dito antes. Quem quer ver o contrário, troca o rigor da análise pela simpatia ao bom velhinho, mas não ajuda a resolver essa questão que ele nos deixou.

Um poeta tem o direito de escrever sobre o que ele quiser, embora as suas opções, evidentemente, cobrem um preço. O nome de Mario Quintana, o mais importante poeta gaúcho e seguramente um dos mais destacados da cena nacional, demanda hoje uma série de perguntas, algumas suscitadas no diálogo entre poetas ou acadêmicos, quase sempre de modo restrito, como se ninguém quisesse incomodar a justa admiração que o público lhe devota. Porque tem o tamanho que tem, merece e resiste a toda a reflexão, seu lugar está garantido, o que importa é que outros modos de sentir sejam gerados, consoantes com a demanda da realidade em movimento, junto aos poetas capazes de exprimi-los. Para ombrear com ele, será preciso ir além dele, o mundo não pára.

Formuladas de maneira investigativa, algumas perguntas se impõem. As opções poéticas que tomou ao longo da vida ampliaram ou limitaram a profundidade da obra? Ao preferir-se à margem das questões sócio-políticas, trocadas pelo embate direto com as pequenas e palpáveis coisas da vida, que reflexos isso trouxe à obra, se mesmo do pequeno, o que é plenamente viável, evitava tirar o todo? Essas opções estão ligadas a um certo tom passadista e negativo ante ao progresso, sempre visto como um incômodo, em alguns de seus poemas? É possível concordar com a formulação do crítico gaúcho Luís Augusto Fischer, segundo a qual Quintana, apesar de poeta nacionalmente importante, não atingiu a esfera dos maiores, ao lado de gente como Carlos Drummond de Andrade e outros, por recusar-se às grandes questões de sua época? Drummond, aliás, produziu uma pertinente indagação poética, bem-vinda ao caso e merecedora de reflexão:
“Como fugir ao mínimo objeto, ou recusar-se ao grande?”

Quintana, contudo, resolveu muitas demandas para nós, as mesmas que levaram outros a bater cabeça no muro, recebendo por isso o carinho do público. A assunção do cotidiano, da rua, das pessoas que nela transitam como matéria da poesia é uma dessas conquistas. A fluência verbal nos poemas, na poesia em prosa, e inclusive nas formas fixas como a do soneto, é outra: já não se escreve enrolado, de trás pra frente, cuspindo versos.

O MAPA

Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...

(É nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...

Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)

Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)

E talvez do meu repouso...

(Apontamentos de História Sobrenatural, 1976)

Tradutor de 138 livros – de autores fundamentais como Proust, Conrad, Voltaire, Virginia Woolf, Maupassant, Lin Yutang, Balzac, Merimée, Papini, etc – ele não brandia sua erudição, preferia citar nos seus textos os populares Anjo da Guarda, Menino Jesus, Frankenstein, Simbad, Jack o Estripador, Lili, Tia Élida, Major Pitalunga e outros. E ao eleger os tipos humanos reais, merecedores de sua atenção, agia de igual modo. Mesmo sendo um poeta lírico, apegado a temas como a passagem do tempo e o ser diante da morte, retratava a experiência das pessoas comuns, sem atrativos especiais maiores do que a faina diária pela sobrevivência e a sabedoria nela adquirida. Se deixou para outros ou para os pósteros o equacionamento de algumas questões relativas à poesia e à arte, como procuramos demonstrar, isso não quer dizer que não se colocasse ao lado do povo.

AS PARTEZINHAS

Num remoto verão, ouvi uma cozinheira consultando o farmacêutico da esquina, a propósito de sua filhinha de meses:

– Ah, seu Lotário, nem queira saber. A toda hora eu ponho talco nas partezinhas dela... Não adianta! O senhor não poderia me arranjar alguma outra coisa?

Mas que diplomacia de linguagem – refleti, – que respeito aos ouvintes e, principalmente, à criaturinha em questão!

E que haveriam de pensar daquela grossa comadre certas mulheres finas de hoje? As quais, por um esnobismo às avessas, tentam falar como elas pensam que fala o povo. Ora, o povo é mais refinado...

(A Vaca e o Hipogrifo, 1977)

A recusa humorada ao excessivo e ingênuo apego à forma – na verdade, à deformação da arte – é mais uma contribuição sua, fosse o matiz parnasiano ou concretista, como se pode ler nos livros Espelho Mágico (1951) e Do Caderno H (1973), respectivamente:

DO CUIDADO DA FORMA

.......Teu verso, barro vil,
No teu casto retiro, amolga, enrija, pule...
Vê depois como brilha, entre os mais, o imbecil,
......Arredondado e liso como um bule!

TRECHO DE ENTREVISTA

Mas por que falar em poesia concretista? Diga-se concretismo, apenas, e estará ressalvada a poesia.

E certa narrativa contemporânea de apelo comercial precisaria conhecer o chiste abaixo, também de Do Caderno H:

REFINAMENTOS

Escrever o palavrão pelo palavrão é a modalidade atual da antiga arte pela arte.

Mais do que tudo, ele nos legou o seu humor poético – um dado importante que não pode ser reduzido ao simples poema-piada, embora ele também o exercitasse, particularmente nos aforismos – uma maneira muito sua de se relacionar com os outros e com o real, às vezes escondida como fina ironia dentro dos melhores poemas. Caso raro, raríssimo, o de um lírico bem-humorado! Sendo o humor um modo muito saudável de encarar o mundo, eficiente na criação imediata da perspectiva realista, e causador de uma grande economia psíquica, como observou Freud, por definição libertadora. Quintana era um trocista de primeira, dentro e fora da poesia. Durante os últimos anos da ditadura, um Ministro de Estado se aproximou dele em uma sessão de autógrafos, na Feira do Livro de Porto Alegre, e tentou ser gentil: “Gosto muito dos seus versinhos”. Quintana, abrindo sua típica expressão de incredulidade, revidou no mesmo instante: “Obrigado por sua opiniãozinha”. No livro A Vaca e o Hipogrifo, reparem só, até da morte ele consegue fazer graça: “é quando a gente pode, afinal/ estar deitado de sapatos...”

O contato direto do poeta com o público, através da seção Do Caderno H – iniciada em 1943 na Revista Província de São Pedro, da épica Livraria do Globo, depois no Correio do Povo de 1953 até 1967, transferida para o Caderno de Sábado até 1980 e Letras & Livros do mesmo jornal até 1984, com reprodução no Jornal da Tarde de São Paulo e ainda na revista Isto É – com certeza contribuiu para o entrelaçamento entre autor e público, ampliando o seu modo simples e elevado de tratar a complexidade da vida e criando um público leitor de poesia no Rio Grande do Sul, algo nada desprezível. Tanto que – apesar de hoje se dizer que Quintana é localmente mais conhecido do que sua poesia – a idéia que os gaúchos têm do que seja ou não poesia remete sempre ao que ele realizou, o que se pode comprovar em conversas, nos resultados dos concursos literários e em muitos dos poemas que circulam nos ônibus de Porto Alegre. De resto, acontece o mesmo em outros estados onde houve um poeta dominante, como é o caso de Paulo Leminski no Paraná.

Quanto à elevação e simplicidade, quem não se deixaria atingir por algo tão singelo, verdadeiro e pra cima como isto?

Os casais que fazem amor estão dando corda no relógio da vida.

Agorinha apareceu nova teoria no pedaço, e eu não abordaria o tema se não fosse ele colocado em pauta por um destacado pensador do nosso sistema literário em pública palestra. Mario Quintana homossexual? Bobagem. Morreu sozinho mas teve lá suas namoradas, e a mencionada Eloí Callage, então estagiária do Correio do Povo, é só uma delas. Eu mesmo vi, nas mãos de uma senhora hoje avó, uma quantidade de poemas manuscritos e, entre eles, um bilhete erótico sobre o qual estava colada uma foto de revista, mais arrancada do que recortada, na qual uma bela moça nua apertava entre as nádegas um lírio vermelho. Mais cedo ou mais tarde isso aparece, fiquem tranqüilos, não vou ser eu quem vai entregar o jogo. Sem falar na conhecida paixão do poeta por Cecília Meirelles, mulher casada, nunca correspondida.

A OFERENDA

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos...
Trago-te estas mãos vazias
Que vão tomando a forma do teu seio.

(Esconderijos do Tempo, 1980)

ESTUFA

Que imaginação depravada têm as orquídeas! A sua contemplação escandaliza e fascina. Vivem procurando e criando inéditos coloridos, e estranhas formas, combinações incríveis, como quem procura uma volúpia nova, um sexo novo...


(Sapato Florido, 1948)

Quintana escreveu algo que nos remete hoje, em homenagem aos seus 100 anos, a ele mesmo e a um sentido da vida:
“Quando morremos acontece com as nossas esperanças o mesmo que com esse brinquedo de estátuas, em que todos se imobilizam de súbito, cada qual na posição do momento. Mas as esperanças têm menos paciência. E vão imediatamente continuar, no coração dos outros, o seu velho sonho interrompido.”

E lá vamos nós.

Bibliografia:

ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002.

CLEMENTE, Elvo; MOREIRA, Alice Terezinha Campos e CAMINHA, Heda Maciel. A ironia em Mario Quintana. Porto Alegre: Acadêmica, 1983.

FEIX, Daniel. Mario Quintana, luz sobre o poeta. Revista Aplauso, Porto Alegre, n. 72, pp. 26-33, Jan. 2006.
FIGUEIREDO, Maria Virgínia Poli de. O uni-verso de Quintana. Caxias do Sul: UCS/EST, 1976.
FISCHER, Luís Augusto. Literatura gaúcha. Porto Alegre: Leitura XXI, 2004.
_________________. Um passado pela frente, poesia gaúcha ontem e hoje. Porto Alegre: UFRGS, 1998.
FORBES, Jorge. O analista do futuro. Revista Memória da Psicanálise, São Paulo, n. 4, pp. 6-13, 2005.
QUINTANA, Mario. Quintanares (A rua dos cataventos, Canções, Sapato florido, O aprendiz de feiticeiro e Espelho mágico). Porto Alegre: Globo/MPM, 1976.
_______________. Do caderno H. Porto Alegre: Globo, 1973.
_______________. Prosa e Verso. Porto Alegre: Globo, 1978.
_______________. Apontamentos de história sobrenatural. Porto Alegre: Globo, 1984.
_______________. Literatura comentada. (Seleção, notas e estudos de Regina Zilberman). São Paulo: Abril, 1982.
_______________. Instituto Estadual do Livro. Mario Quintana. Autores Gaúchos, Porto Alegre: IEL/ULBRA/AGE, 1996.
MARTINS, Cyro. Escritores gaúchos. Porto Alegre: Movimento, 1981.
SCHMIDT, Simone P. e BARBOSA, Marcia H.S. (Org.) Mario Quintana. Cadernos Porto & Vírgula, v. 14. Porto Alegre: SMC/Prefeitura Municipal, 1997.
SCHNEIDER, Sidnei. Mario Quintana, simplicidade e humor. Hora do Povo, São Paulo, 14 mai. 1994. Segundo Caderno, p.7.
______________. A curiosa regra do sofrimento do artista. Hora do Povo, São Paulo, 20 fev. 1997. Segundo Caderno, p. 8.
______________. Bilac e o parnasianismo. Poiésis, Porto Alegre: Ed. Autor, 2000. p.9.
SCHÜLER, Donaldo. A poesia no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.

Publicado nos jornais Viva Vaia (Porto Alegre, RS), Hora do Povo (São Paulo, SP) e pela CUT Nacional (Brasília, DF), Secretaria Educação Governo Paraná (Curitiba, PR) e Rádio Com (Pelotas, RS).

15 março 2007

DÉBORA

aos
14 anos
beijei
os seios
de uma
carioca
da mesma
idade
em torres,
água-viva
benfazeja
na concha
dos lábios,
eu tocava
os seios
e os seios
nasciam,
veleiros
ancorados
querendo
zarpar.
não era
como hoje,
apertadas
dentaduras
pairavam
no monturo,
não queriam
saber de
seios metidos
na boca
de meninos.
enquanto
o fazia,
enlameando
de saliva
o mel
daquela
abelha,
disse
(leitãozinho
de freud)
tudo o
que sabia
sobre
esse
materno
deleite.
não sei
o que
pensou
a pupila
arregalada
daquela
filha,
o lábio
pendente
e úmido
daquela
folha
aberta
no sofá
do hotel,
mas intuo
que gostou
da fala
cômica
que comia
a sua,
da língua-
falo
sem
filologia,
do meu
discurso
em forma
de fruta,
da minha
caligrafia
tatuada
na sua
pele boa
de sutra
aprendiz.
divertido
deve ser,
também
para ela,
recordar
uma voz
de trigo
mapeando
os cílios
da baía,
até obter
dois bondinhos
eretos.
(querida
rainha,
escrevo
para te
possuir,
não sei
mais
do que
um nome,
por isso
te acrescento
outros.
brinco
com eles
aqui.)

13 março 2007

QORPO SANTO (1829-1883)


[AS ARANHAS]

Tão lindas as aranhas
Tão belas, tão ternas
Pois caem do teto
E não quebram as pernas!


UMAS PERNAS

Eu não cei aonde vi
Umas pernas, a um sagui.
As quaes eram, tão bem feitas,
Que por certo, satisfeitas.

Ficariam as estrelas,
Se as podessem ter tão belas!


LINGUAGEM

Falão-se os montes,
Falão-se as fontes,
Falão-se as feras,
Falão-se as pedras!
- Todos se falão!

Falão-se os gatos,
Falão-se os sapos,
Falão-se as aves,
Falão-se...as traves!
- Todos se falão!

Falão-se os broncos,
Falão-se os troncos,
Falão-se os peixes,
Falão-se os feixes!
- Todos se falão!

Falão-se os rios,
Falão-se... os frios,
Falão-se os ares,
Falão-se os mares!
- Todos se falão!

Falão-se os galos,
Falão-se os lagos,
Falão-se as cassas,
Falão-se as massas!
- Todos se falão!

Falão-se as pennas,
Falão-se as scenas,
Falão-se as cazas,
Falão-se as brazas!
- Todos se falão!

Falão-se as vinhas,
Falão-se as pinhas,
Falão-se os livros,
Falão-se os bilros!
- Todos se falão!

Falão-se os barros,
Falão-se os jarros,
Falão-se as faxas,
Falão-se as taxas!
- Todos se falão!

Falão-se as redes.
Falão-se as...sedes,
Falão-se os bixos,
Falão-se os nixos!
- Todos se falão!

Falão-se os sernes,
Falão-se os vermes,
Falão-se as flautas;
Falão-se as pautas!
- Todos se falão!

Falão-se os tigres,
Falão-se os livres,
Falão-se os tactos,
Falão-se os fatos!
- Todos se falão!

Falão-se os matos,
Falão-se os ratos,
Falão-se as fibras,
Falão-se as tigras!
- Todos se falão!

---- ---- ----

Cesso a vida de – qompòr;
Cesso a vida d’esqritor;
Passo a rever minhas obras;
Passo a qortar-lhes as sobras.


QORPO SANTO (1829-1883)

08 março 2007

AGOSTINHO NETO

.
Há um sussurro morno
sobre a terra;
degladiam-se
luz e trevas
pela posse do Universo.

Agostinho Neto (Angola, 1922-1979)

03 março 2007

FUSO HORÁRIO

.
preciso de uma mulher que me acorde.
não preciso de uma mulher: mas de um despertador.
acordar para fora de si de manhã cedo.
é por isso que abrimos as janelas,
repete-se o gesto de deixar o mundo entrar.
não há mal em dormir de dia,
mas os sonhos se realizam
melhor sob a luz do sol.
há mais gente disposta
e menos estrelas sem sentido.
interrogar a pedra é alojá-la dentro de si,
ou o universo.
mais não digo porque não sei o que é
o amor.
.

02 março 2007

CONTRIBUIÇÃO DE PICASSO

.
casal no auge da liberdade,
não havia ar o suficiente
para tanto abrir de enlatados,
a voz do homem lutava
espada
com a voz da mulher,
plantas queriam sumir
dos vasos,
tensa, na parede,
a reprodução de um desses
deuses vesgos
de picasso, tensa
mas plana e quieta,
a noite rasgou-se em proporções de medusa,
polvos compactos flanavam de uma boca à outra,
pupilas como lanças espetavam a visão contrária,
o dia não amanhecia,
a noite não tinha importância,
nem os filhos,
nem os vizinhos,
quando a gravura caiu da parede
estraçalhando o vidro,
os dois olharam para o lado
dos cacos
e pararam de gritar,
deixando a discussão
para um momento mais calmo.

.

01 março 2007

CERÂMICA

.
na primeira fase da humanidade,
o barro, objeto do desejo, viu-se
moldado como pegada de cervo,

virou utensílio, panela, recipiente:
Deus!, o homem se fez de barro,
disse a menina sujinha de batom.

.


Sidnei Schneider
do livro Quichiligangues

ARTE SHIPIBO

.











Arredores de Pucallpa, Amazônia Peruana.