13 julho 2011

O IDIOMA-PEIXE NA POESIA DE MARLON

Prosa do Mar (7Letras/Fumproarte), livro do poeta porto-alegrense Marlon de Almeida, ao trazer uma palavra supostamente distante da poesia no título, parece dar conta da eterna conversa do mar com a orla, estendida à presença da voz dos personagens que a habitam e à linguagem poética utilizada. Esta última busca uma simplicidade e clareza similares à prosa de mar limpo, sob céu azul e sol forte, sem excessivos contorcionismos ou subtrações sintáticos, embora às vezes rebatendo em obscuras vagas, semoventes como o seu objeto. Serve-se dos recursos que a língua oferece à poesia, escasseando-os por vezes, dentro de um andamento que recorda a suave tranquilidade pela qual pugnavam o latino Horácio Flaco e seu discípulo moderno Ricardo Reis.

Seria quase redundância afirmar que uma linguagem desse tipo, que continue interessante e mantenha o corte de profundidade, resulta de uma escrita em nada ingênua. O fato é que Marlon obtém êxito no que se propõe, e em vários momentos. Tal poética, no que se refere à recepção, abre sua obra para a possibilidade de um público letrado mais amplo, o que revela uma opção e um direcionamento, objeto de discussão dos poetas brasileiros desde, pelo menos, a problematização do tema pela conferência de João Cabral de Melo Neto, Poesia e composição, em 1952: a modernidade da poesia relacionada à perda do leitor, “anulando, do momento da composição, a contraparte do autor na relação literária, que é o leitor e sua necessidade” (JCMN. Prosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998).

A questão, evidentemente, teve respostas diversas, seja através de um texto que usufruía de formas populares, modificadas pela ação consciente do poeta culto, como fez o próprio Cabral, seja através do que hoje parece pouco crível devido à falência da ilusão, a tentativa da poesia concreta no seu nascimento, como observou Paulo Franchetti, de modernizar a poesia a seu modo para aproximá-la do leitor, ideia abandonada antes mesmo da apresentação do seu “plano-piloto”. (PF. Leminski e o haikai, in A pau a pedra a fogo a pique: dez estudos sobre a obra de Paulo Leminski. Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura, 2010).

Marlon conhece as limitações do alcance de sua poética numa sociedade em processo, que não erradicou a falta de domínio da língua escrita e a poluição midiática empobrecedora, subprodutos e sustentáculos de uma dominação econômica forânea: “Qual o idioma dos peixes?// Falo pra quem se não pra quem/ não me entende?// Mesmo na água não há como ser/ menos árido”, diz o poema que abre o livro.

O estranhamento em relação à linguagem cotidiana, próprio da poesia, não é puramente verbal. O desvio se opera não na dificuldade ou no grau de distorção da linguagem criada como um fim a atingir mecanicamente até a equívoca ostentação, mas ao apresentar um fato linguístico novo, uma maneira inteligente e pertinente de sentir-perceber o mundo. O que demanda o desvio, portanto, é a necessidade de mostrar a realidade de um ponto de vista distinto do usual, mais profundo e verdadeiro, em qualquer das formas possíveis de poesia, da mais difícil à mais receptível, igualmente podendo se desfazer em qualquer uma delas se não conquista um mínimo dessa espécie de clarividência. Talvez seja redundante, tão redundante quanto necessário, afirmar que o centro do que se chama de realidade em arte se refere à experiência humana, e assim é em Prosa do Mar.

Marlon se distancia, no entanto, da interação corriqueira com o mundo praiano, não pretende ir “pra trapiche passear com turista” como diz num poema, adentrando outro universo, menos abordado e menos óbvio, particularmente em termos de RS: o da vida à beira-mar (ou no mar), no sentido primordial da expressão ou em outro de múltiplas ressonâncias, aquele em que todos vivemos. As infinitas possibilidades do tema refletem-se num poema de rimas vocálicas que retira do paradoxal a sua economia: “O mar não principia/ nem termina.// É como um labirinto/ onde perdeste a linha.// O mar não tem saída.”

Quanto às gentes, a voz de um mestre pescador, recriada em itálico no corpo do poema, ensina o ofício que lhe concerne: “Pois veja: estando o poente na proa/ vira-se o corpo ao contrário e rápido larga-se a rede/ na altura da estrela primeira/ que alguns por costume chamam de Dalva,/ outros de Vênus, mas eu, sendo por anos sabido/ deste oceano de Deus, bem te digo:// Joga-se a rede por brilho de estrelas no olhar”. Pesca-se “Peixe se há, mais a lua e a saudade de casa/ que é coisa de sobra pra quem tá no mar”. Em outro poema, a voz adquirida se descortina: “Olho para o peixe/ (que apesar de morto permanece digno)/ e não sinto pena porque sinto fome”.

Mas não se trata apenas, como já se disse, de uma poesia restrita à aproximação com o específico povo do litoral, vai além: “Digo:/ um marujo deve de ser/ como prato a serviço:/ precisa de ter cicatrizes/ por uso.// Você está servido?” Um pequeno poema já se tornou quase clássico, exemplo dessa simplicidade que não se entrega ao leitor sem sua reflexão e ecoa dentro dele feito som de caramujo: “Como no amor,/ morre no mar/ quem sabe nadar”.

Marlon, o leitor deve ter observado, traz o mar dentro da palavra que mais o identifica, o próprio nome, uma proximidade nada desprezível.

Sidnei Schneider,
Revista Verbo 21, Salvador-BA, Ano 11, número 142, maio 2011, ISSN 2177-3173.

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